sábado, 3 de abril de 2010

História de um cão




Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo;
Para dizer numa palavra tudo,
Foi o mais feio cão que houve no mundo.

Recebí-o das mãos dum camarada,
Na hora da partida. O cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.

O meu amigo, cabisbaxo, mudo
Olhava-o...o sol nas ondas se abismava...
"Adeus!" - me disse, - e ao afagar Veludo,
Nos olhos seus o pranto borbulhava

"Trata-o bem. Verás como o rafeiro
Te indicará os mais subtis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos"

Veludo a custo habituo-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa palpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso,trêmulo, agitando
A sua cauda - caminhava, errante,
A luz da lua - tristemente. uivando

Toussenel, Figuler e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores,
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo.

Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falavaem rios, árvores gigantes:

Gabava o steamer(1) que o levou; dizia
Que ia tentar inúmeras emprêsas:
Contava-me também que a bordo havia
Toda sorte de risos e belezas.

Finalmente, por baixo disso tudo,
Em nota bene do melhor cursivo,
Recomendava o pobre Veludo,
Pedindo as Deus que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento,
Me contenplava, e - creia que é verdade,
Ví, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se aos meus pés silencioso,
Movendo a cauda, - e adormeceu contente,
Farto dum puro e e satisfeito gôzo.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada o Veludo me servia,
Dei-o à mulher dum velho carvoeiro

E respirei: "Graças a Deus já posso"
Diziz eu "viver neste bom mundo,
Sem ter que dar diàriamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo"

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora,
Um alazão inglês , de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.

Mal respirei, porém! Quando dormia,
E a negra noite amortalhava tudo,
Sentí que a minha porta alguém batia:
Fui ver quem era. Abrí. Era Veludo.

Saltou-me as mãos , lambeu-me os pés ganindo,
E de cansado foi rolar dormindo,
Como uma pedra junto do meu leito.

Praguejei furioso. Era execrável
Suportar êsse hóspede importuno,
Que me seguia como o miseravel
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.

E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voze confessá-lo:
Para livrar-me dêsse cão leproso,
Havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo,
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante a instante ia o tufão crescendo,

Chamei Veludo: êle seguiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revôlto manto
E a chuva meus cabelos fustigava. (1)

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogámos;
Dava-me fôrça o tôrvo pensamento
Peguei num remo - e com furor remámos.

Veludo à proa olhava-me choroso,
Como o cordeiro no final momento,
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim dêsse animal nojento.

No largo mar erguí-o em meus braços,
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos(2)
Lutando contra a morte! Era pungente!

Voltei à terra - entrei em casa. O vento
Zunia na amplidão profunda
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas, moribundo.

Mas ao despir dos ombros meus o manto,
Notei - oh grande dor! - haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: - eu tinha-o unido

Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente,
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi êsse cão imundo
A causa do meu mal! Ah! se Veludo

Duas vidas tivera, - duas vidas
Eu arrancara àquela besta morta,
E aquelas vis entranhas corrompidas!
Nisto senti uivar a minha porta.

Corrí, abrí...Era Veludo! Arfava:
Extendeu-se aos meus pés - e docemente
Deixou cairda bôca, que espumava,
A medalha suspensa da corrente.

Fôra crivel, oh meu Deus? - Ajoelhado
Junto ao cão - estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo; estava enregelado;
Sacudí-o, chamei-o! Estava morto


Luiz Guimarães.

Extraído do livro: CRESTOMATIA

Um comentário:

  1. A fidelidade da amizade dos nossos amigos menores é impressionante.
    Pena que o ser humano precisa ainda muito aprender a exercitar o amor.

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